O fim
de uma
facção

O Centro, mais comercial, preserva poucas áreas residenciais. À noite, se torna uma cidade fantasma que mistura um Rio antigo, histórico e decadente, e construções mais novas que marcam os períodos de investimento e otimismo recentes da capital.

Os bairros mais nobres e famosos da cidade ficam na Zona Sul. É onde se concentra o turismo: as praias de Copacabana e Ipanema; o Corcovado; o Pão de Açúcar; entre outros. As favelas da região são importantes para o tráfico porque vendem pra quem tem mais dinheiro.

A Zona Norte é a região mais populosa. Cresceu junto com as estradas férreas do passado. No século 20, tornou-se o primeiro exemplo de subúrbio da cidade, habitada pelos trabalhadores expulsos pela valorização comercial do Centro e da Zona Sul. É o ponto de encontro da cidade do Rio com a Baixada Fluminense.

Região que mais cresceu nas últimas décadas, a Zona Oeste é a mais extensa do Rio – tem quase ¾ do território da cidade. Uma parte, simbolizada pela Barra da Tijuca, é repleta de condomínios fechados e caros para os "novos ricos"; a outra, dos bairros mais afastados, é a região que menos sente a influência do Centro e da Zona Sul. Um mundo à parte.

Nossa história começa em janeiro de 2017. Todas as favelas neste mapa – divididas entre as facções Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP), Amigos dos Amigos (ADA), e os paramilitares da milícia – mudarão de comando ou vão invadir outras áreas até dezembro de 2018, entre elas várias das maiores, mais lucrativas e mais importantes da cidade.

As facções seriam multinacionais brasileiras caso fossem lícitas. Segundo estimativas da Polícia Civil, só a favela da Rocinha chegou a faturar mais de R$ 100 milhões por ano sob comando da Amigos dos Amigos, a ADA. A favela era chefiada pelo traficante Nem. A maior parte da grana era para pagar o “arrego” – o mensalinho dos policiais corruptos –, que mantinha a facção informada e a região na santa paz.
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Além da Rocinha, a ADA dominava outras 18 favelas e era um colosso na venda de drogas na cidade, só menor que o tradicional Comando Vermelho.*

* A fonte para esta e para as demais informações da reportagem estão no rodapé da página.

O Comando Vermelho mantinha suas áreas históricas no Centro e nas zonas Norte e Sul. A primeira facção do Rio de Janeiro surgiu com o nome de Falange Vermelha em 1979, durante a ditadura, a partir da interação entre presos comuns e presos políticos no presídio Cândido Mendes, em Ilha Grande, litoral sul do estado do Rio de Janeiro.

Eles reinaram sozinhos até o surgimento do Terceiro Comando, na primeira metade da década de 1990. A facção passaria ainda por mudanças até se tornar o Terceiro Comando Puro (TCP), como é conhecida hoje. Também no início de 2017, tinha presença forte na Zona Oeste e em favelas próximas da Baixada, na Zona Norte.

Já as milícias tinham o comando de sete favelas. Formadas por policiais, bombeiros e militares da ativa ou da reserva, elas eliminam o tráfico das comunidades, mas cobram dos moradores por serviços como "segurança", gás, água e internet. Hoje em dia, milícia também trafica.

A Amigos dos Amigos rivalizava com o TCP pelo posto de segunda facção mais importante da cidade. A facção surgiu logo que Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, foi expulso do Comando Vermelho depois de tramar a morte do mais respeitado traficante da época, Orlando Jogador. Em 1996, preso em Bangu e rejeitado por ser um traidor, Uê articulou a fundação da ADA com dois traficantes importantes: Paulo César Silva Santos, o Linho, de estilo "empresário" e com ligações diretas com fornecedores da Bolívia e do Paraguai; e Celso Luís Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém, de perfil mais negociador e com contatos na alta cúpula da PM.

Uê Foto: Luciana Whitaker/Folhapress

Linho Foto: Reprodução/Procurados

Celsinho da Vila Vintém Foto: Alexandre Campbell/Folhapress

Uê não teve tempo de ver a ADA se espalhar da Vila Vintém para outras áreas da cidade. Ele morreu carbonizado durante uma rebelião em 2002. Linho também não. Ele desapareceu em meados dos anos 2000 – a informação de que ele foi assassinado por seu próprio advogado em São Paulo jamais foi confirmada pela polícia –, e sua inicial virou o gesto que é símbolo da facção, um ‘L’ com os dedos.

O único fundador ainda vivo – ou não desaparecido – é Celsinho da Vila Vintém, que, no episódio do motim no qual Uê foi assassinado, acabou poupado pelo seu rival, Fernandinho Beira-Mar, à época líder do Comando Vermelho. “Só estou aqui porque o cara não me fez nada. Nem um tapa na cara eu levei”, afirmou durante um julgamento em 2015. O motivo é, até hoje, um mistério.

A madrugada de verão era quente na favela da Carobinha, em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Moradores aproveitavam o domingo em um pagode quando homens armados entraram pela rua principal. Naquele dia, três pessoas foram mortas e 13 ficaram feridas. A área é estratégica. A Estrada do Guandu do Sena, que corta a favela, dá acesso ao complexo de favelas da Vila Kennedy, ao presídio Bangu 1 e ao 14º Batalhão de Polícia Militar.

Eram traficantes da facção Amigos dos Amigos dispostos a tomar o território do miliciano Naldo, com o apoio de Carlinhos Três Pontes, o homem conhecido por unir tráfico e milícia. Naldo e Carlinhos tiveram um desentendimento. Dizem que Naldo não gostava de se misturar com o tráfico – ele era “milícia raiz” – e chamava Carlinhos de "Tralícia". Também se dizia que a área estava sem o apoio da Liga da Justiça, o maior grupo miliciano do estado e, por isso, enfraquecida. O grupo avançou pelas ruas de dentro, e os paramilitares de Naldo, tradicionais donos da região, não tiveram outra opção a não ser a fuga. A favela foi tomada.

Tirar a Carobinha da milícia, mais que uma vitória, era a comprovação de força de uma das mais lucrativas organizações do tráfico, com líderes de visão empresarial, donos de áreas até mesmo fora da cidade do Rio.

Celsinho da Vila Vintém era o primeiro na hierarquia, e os muros da cadeia não foram obstáculos para que ele organizasse o tráfico nas ruas. A década de 2000 foi o auge da Amigos dos Amigos e, até 2017, a régua para medir sua grandeza era a Rocinha: se tudo ia bem na ‘Roça’, nada abalava a cúpula da facção. A playboyzada da Zona Sul estava abastecida, e o lucro e o marketing, garantidos.  

Encravada entre São Conrado e Leblon, dois dos bairros mais caros da cidade, a Rocinha é uma área com mais de 100 mil habitantes. A fortuna faturada no morro tinha dono: Antônio Bonfim Lopes, o Nem. Ele ficou famoso no comando da Rocinha, entre outubro de 2005 e novembro de 2011. Rico, popular, porém um pouco mais discreto do que seus pares, Nem foi preso ao tentar fugir no porta malas de um carro antes de a UPP chegar, num espetáculo transmitido ao vivo.

Logo que foi preso, Nem foi transferido para o Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, Zona Oeste do Rio. Depois, ele ainda seria levado para uma cadeia federal em Rondônia. Foto: Angelo Antonio Duartel / Agência O Globo / AP Images

Mesmo na cadeia federal, Nem não largou totalmente o seu negócio, mas teve de passar a administração para seu então braço direito, Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157. Seria uma decisão da qual a cúpula se arrependeria anos depois, mas ninguém sabia disso. Ainda.

Por enquanto, a ADA continuava como uma megaempresa com ramificações não só da Zona Sul à Zona Oeste do Rio, mas também em Niterói, Baixada Fluminense e Macaé, no norte do estado.

A nova facção durou poucos meses. Carlos da Silva Fernandes, o Arafat, chefe da ADA no Complexo da Pedreira, mudou de lado assim que percebeu atritos no comando. Ele ordenou que seus traficantes pulassem para o Terceiro Comando Puro. Preso em Bangu 1, pediu à Secretaria de Administração Penitenciária para mudar de ala. Tinha medo de represálias, já que em Bangu os presos são divididos em blocos de acordo com sua facção. Arafat não estava sozinho. Entre outubro e dezembro do ano passado, 840 presos solicitaram a transferência de Bangu 4 para a Lemos de Brito, cadeia do TCP.

Com o fim da aliança, a ADA perdeu uma favela sem ter tido a chance de dar um tiro sequer. No fim, o TCA foi uma cilada.

Desfeita a união, o segundo sinal de enfraquecimento da Amigos dos Amigos chegou com o inverno de 2017. Vestidos com jaquetas pretas e toucas ninja, milicianos invadiram a favela do Saçu e expulsaram os traficantes.

Apesar de ser um morro pequeno, localizado em Quintino, bairro pacato do subúrbio carioca, a perda deixou a cúpula da ADA de olhos abertos. Com razão.

Em outro canto do Rio‍, a milícia seguiu o plano de sufocar a ADA. Em setembro, um grupo tomou a favela da Nogueira, em Realengo, na Zona Oeste.

Um miliciano conhecido como Cigarrão chegou a fazer uma transmissão da invasão ao vivo pelo Facebook. “Tomei, tomei, o Nogueira é nosso, filha da puta”, dizia na live. No vídeo, um companheiro pergunta: “vai jogar no Face?”, e ele responde “vou não, vou excluir”.

Cigarrão foi executado pelos próprios comparsas no dia seguinte.

Na outra ponta da cidade, na Rocinha, um áudio já circulava nos smartphones dos moradores: “O Nem não é mais dono de nada, não, não é mais nosso patrão, não é nosso amigo porque ele mandou dar tiro na gente.” Era Rogério 157 avisando sobre o rompimento com seu chefe, ainda preso em Rondônia.

A disputa foi deflagrada em agosto de 2017, e a favela ficou dividida: na parte de baixo, estavam os aliados de Nem que discordavam da administração de Rogério – o traficante cobrava taxas altas aos comerciantes e monopolizou a venda de gás. No alto da favela, os fiéis ao novo chefe do morro. No fim, o racha tirou da ADA sua principal área: Rogério deu um golpe interno e colocou a favela novamente sob a bandeira do Comando Vermelho.

Após tanta troca de tiros, o governo decidiu intervir. Exército ocupou, polícia subiu. Rogério 157, finalmente o dono da porra toda – agora no CV –, teve que fugir. Depois de rodar a cidade, acabou preso na Favela do Arará, a mais de 20 quilômetros da Rocinha.

Nem não podia ignorar o desmonte da ADA, principalmente após a perda de sua principal favela. O traficante negociou a entrada para o Terceiro Comando Puro – sem perder o PCC da mira.

Com auxílio das forças armadas, a polícia civil capturou Rogério 157 antes do Natal de 2017. Foto: Fabio Teixeira/Associated Press

Enquanto a ADA ainda juntava os cacos do estrago na Rocinha, o Comando Vermelho decidiu investir no Morro do Juramento, em Vicente de Carvalho, na Zona Norte.

Mais de cem traficantes saíram do Complexo do Alemão para invadir o território que era há anos dominado pela ADA.

A briga foi violentíssima. O Juramento seguia em disputa e batia quase 50 dias de confrontos diários. Ao menos 12 pessoas já tinham sido mortas quando o CV conseguiu, enfim, expulsar os membros da ADA.

O São Carlos, localizado na região central da cidade, era uma espécie de filial principal dos negócios de Nem. Ele costumava acionar os traficantes da favela sempre que necessário. E não foi diferente durante a disputa com Rogério 157, quando um grupo com mais de 60 homens saiu dali, atravessando cerca de 10 bairros da cidade em carreata para confrontar os rivais na Rocinha.

Os líderes do tráfico no São Carlos, tradicionais seguidores de Nem, acataram o conselho do ‘Mestre’ e trocaram a ADA pelo Terceiro Comando Puro.

Assim como Nem e a turma do São Carlos, outros líderes decidiram também pular do barco, levando homens e armas para outras facções. Um deles foi Leandro Nunes Botelho, o Scooby, chefe do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, na Zona Norte. Ele estampou as manchetes dos jornais em 2009 como o responsável pela queda de um helicóptero da PM durante uma operação; três policiais morreram após a aeronave ser abatida a tiros.

O paradeiro de Scooby é desconhecido até hoje – e a recompensa é alta.

Foragido desde o episódio, Scooby foi outro que aproveitou a janela de transferências e entrou para o Terceiro Comando Puro. A ADA minguava.

O mês de novembro ainda nem tinha terminado quando traficantes do Comando Vermelho tomaram outra área da Amigos dos Amigos.

A bola da vez foi o Caju, na Zona Portuária da cidade. Em pleno feriado de Proclamação da República, o bairro, contornado pela Baía de Guanabara, viveu mais de 10 dias de terror até virar CV de vez.

Passando as festas de fim de ano, a ADA contou o prejuízo de territórios, homens e armas. No ano anterior, Caju, Juramento e Rocinha viraram Comando Vermelho depois de intensos confrontos; Macacos, Pedreira e São Carlos decidiram adotar o Terceiro Comando Puro; e Saçu e Nogueira agora eram da milícia.

As mudanças nessas favelas repercutiram como um efeito dominó em territórios menores, como o caso da Cruzada, no Leblon, que virou CV, e da Casa Branca (Tijuca), agora do TCP. Ambas funcionam mais como uma “estica”, um puxadinho das favelas grandes da área, no caso, Rocinha e Macacos, respectivamente. Carobinha, tomada a tiros pela ADA em janeiro de 2017, voltou para as mãos da milícia.

Em oito meses a ADA passou do domínio de 19 favelas para apenas 5, sem contar as esticas.

Enquanto as seleções disputavam a Copa do Mundo na Rússia, o Rio de Janeiro era disputado na bala. O que restou para a ADA no mapa do tráfico carioca foram favelas sem muito peso e distantes entre si. Com seu líder mais forte, Celsinho, encarcerado há quase duas décadas, elas viraram presa fácil para as facções rivais.

O Terceiro Comando Puro invadiu, em junho, o Morro da Coroa, no Centro. Alguns traficantes decidiram aceitar a mudança e foram autorizados a permanecer na favela. O grupo fiel à ADA fugiu.

Dias antes de ocupar a Coroa, o Terceiro Comando Puro invadiu também o Batan, em Realengo. A favela foi uma das primeiras a receber uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), ainda em 2009, em um momento simbólico: ali, repórteres do Jornal O Dia foram torturados por milicianos enquanto realizavam uma matéria investigativa, em 2008. O caso chegou a ser lembrado no filme Tropa de Elite 2 (2010) e foi o gancho para a abertura da CPI das Milícias, em 2008. Até então muita gente achava que milícia era coisa boa – e ainda há quem ache.

A caravana do Terceiro Comando Puro não parou. No mês seguinte, um grupo de traficantes saiu em comboio para invadir o Morro do Urubu, em Pilares, Zona Norte. Os chefes locais receberam um ultimato: ou sai da ADA, ou morre. Eles aceitaram a mudança.

Restavam apenas duas áreas sob comando da ADA na cidade do Rio: Vila Vintém, localizada entre Padre Miguel e Realengo, na Zona Oeste, bem distante da região central e da Zona Sul da cidade; e o Morro do Dezoito, em Água Santa, único aliado possível para a Vintém na retomada de algumas áreas. A Vintém é até hoje a base do líder do que restou da ADA, Celsinho.

A ADA perdeu muitas batalhas, mas não queria perder a guerra. A facção vem empenhando seus esforços em renascer no Rio. Nem segue em contato com o PCC. Na segunda quizena de outubro, sua filha, Eduarda dos Santos Lopes, de 19 anos, teve a prisão decretada, com outras quatro pessoas, sob acusação de articular em São Paulo uma invasão da favela da Rocinha.

Duda, filha de Nem, está foragida.

Depois desse plano fazer água, a tática é comer pelas beiradas, investindo o que resta na Região Metropolitana. Em outubro, traficantes da ADA de Niterói, com o apoio de um comboio da Vila Vintém, tomaram a favela da Nova Grécia, no município de São Gonçalo. O território pertencia ao Comando Vermelho. Um mês depois, a ADA investiu também contra o morro vizinho, Novo México, e matou um rival do CV. O embate ali não acabou.

Dentro da capital, a última ousadia executada pela ADA foi um ataque contra milicianos do Morro do Jordão, em Jacarepaguá, no início de outubro. Os tiros não deram em nada, mas serviram para, além de assustar os moradores, mostrar que seus traficantes estão em processo de reorganização, aglutinados na Vila Vintém, o último reduto importante da facção.

Fundador, Celsinho da Vila Vintém é o último comandante da Amigos dos Amigos. E é ele quem decidirá o futuro da ADA. Enquanto isso, a justiça fluminense decide o dele. Celsinho está preso por tráfico de drogas, roubo de cargas e formação de quadrilha. Em maio de 2017, foi transferido de um presídio federal para o Complexo de Gericinó, em Bangu. Ele estava a poucos meses do cumprimento total da pena, mas em setembro daquele ano, no auge dos confrontos entre Nem e Rogério 157 na Rocinha, ele teve outra prisão temporária decretada. Segundo a Justiça, ele foi um dos mandantes da invasão.

O setor de inteligência da secretaria de Segurança monitora uma possível entrada de Celsinho da Vila Vintém para o Comando Vermelho – o que não seria novidade, já que foi no CV que ele deu seus primeiros passos no tráfico. Caso a negociação se confirme, será o fim oficial da ADA, que durou mais de 20 anos e foi reduzida a pó em pouco mais de um ano. Enquanto isso, a Vila Vintém, cercada de rivais por todos os lados, permanece como o último bastião da facção na cidade.